Podcast D30

Pontos de Vida e interpretação em jogos de Fantasia

Depois de testarmos o D&D Next, fui ler resenhas e opiniões sobre o negócio, e me deparei com uma guerra de opiniões sobre Pontos de Vida. Esse é um assunto que eu gosto muito, e que já discuti com alguns amigos ao longo de vários jogos e campanhas, então resolvi dividir com vocês algumas opiniões.

Nunca fui muito satisfeito com a maneira como D&D, em qualquer edição, lidou com pontos de vida, mas também não achei uma boa forma de fazer isso em nenhum outro sistema. Isso porque eu insisto num jogo realista de Fantasia, com magia e heróis, mas com perigos reais, e não apenas hack and slash.

Vou dividir por partes, você pode ir pulando, mas dê sua opinião ao final!

Há duas maneiras de lidar com pontos de vida.
Ou você coloca muitos pontos no personagem, representando uma reserva vital enorme. Esse é o estilo de D&D, que se reproduz na licença D20, de True20 e Star Wars, e se espalha por sistemas, como Rolemaster e Rifts (ah! o MegaDano).

Ou coloca poucos, mas cria dificuldades para que ele seja acertado, ou alguma facilidade para que ele se cure imediatamente. Esse sistema é usado por Gurps, RuneQuest, Vampire, Shadowrun, entre outros RPGs. (nem vamos falar das diferenças entre os sistemas de Health Points e Vitality Points)

Mas a ideia por trás dos dois sistemas básicos é a mesma. Muitas pessoas não veem dessa forma, o que torna as críticas entre os sistemas difícil, porque as pessoas criticam duas implementações da mesma ideia.

A intenção de ambas é “simular a realidade”, fazer-de-conta que estamos numa luta de espadas, às vezes com magia. Essa simulação, claro, é mais próxima do cinema, livros e histórias em quadrinho que da realidade mesmo. Mas o importante é que elas têm como finalidade uma simulação.

Muitas pessoas então acham que numa o personagem é acertado muitas vezes até que cai, e na outra ele evita ser acertado até que uma hora acontece, e ele caí. Nessa visão, um fighter em D&D vai levar 90 pontos de dano, até que morra, o mesmo fighter em Gurps vai segurar espadas com esquiva, armadura, recuperações, e conseguirá segurar até dois acertos reais, antes de cair.

Mas não é bem assim… há muito se discute os pontos de vida em D&D como uma forma de cansaço. Na verdade, Pontos de Vida é uma tradução errada, eles se chamam Hit Points em inglês (mais ou menos pontos de acerto), e não significam que esse fighter de 90 HP tenha levado 10 espadadas!

Todos sabem que uma única espadada é suficiente para matar uma pessoa. (Para quem não conhece a história dos Hit Ponits e desse ponto de vista, vale dar uma lida nessa entrevista do Dave Arneson, em que ele explica isso e como um jogo de batalha naval inspirou o sistema de HPs. Ou seja, personagens de D&D são como navios enormes! como lembrou o Hackbarth no último Conversa sobre RPG)

Com a 4ª Edição ficou mais claro que os personagens “retomam o fôlego”, mas essa ideia já fazia parte do sistema. Outra alternativa é o sistema de Wounds (ferimentos) que está no Unearthed Arcana e no sistema de Star Wars, mas isso complica as coisas aqui nessa nossa conversa.

O guerreiro vai  ao cinema
Sempre explico essa questão com o filme Duro de Matar. O John McClane pode levar tiros, ser espancado, pisar em cacos de vidro, cair de cima de avião a jato. Mas é só descansar um pouco que está pronto para o próximo combate. É assim no D&D, e é assim no Gurps, porque ele não é realmente “acertado”, até que seja a hora.

Como num filme de capa-espada, Errol Flynn troca golpes com outro espadachim, ou vários, destruindo o cenário, até que um dos dois comece a fraquejar. Quando um personagem começa a fraquejar, aí sim ele é acertado.

Você pode entender os HPs de várias maneiras: contusões, cansaço, machucados, músculos estirados, dor, esgotamento… mas além disso pode ser simplesmente a habilidade do personagem em se esquivar ou resistir a essas condições, forças mágicas, ou simplesmente sorte, e até mesmo a intervenção de poderes sobrenaturais. Leiam um pouco sobre isso na coluna do Mike Mearls, “Hit Points, Our Old Friend”.

Um jogo precisa ser equilibrado
Para equilibrar as coisas, monstros e NPCs são pensados como contrapartida a isso, por isso monstros de D&D têm centenas de HPs, e monstros de Gurps todos têm exoesqueletos, ambidestria e HT estranhamente alto. E isso geralmente leva ao maior problema em jogos de fantasia… a síndrome do combate arrastado.

De fato, ter muitos HPs faz com que personagens de D&D não tenham medo de nada. Ter poucos faz com que personagens de Gurps ou Call of Cthulhu morram o tempo todo. Equilibrar isso é difícil, você bem sabe. Principalmente se você gosta de coisas mais próximas ao terror e histórias como as de Conan, que eu adoro.

É preciso fazer alguma coisa para que os personagens tenham medo de morrer, sem que fique fácil demais matá-los. D&D tentou fazer com níveis ideais para o jogo. Acho que até a 2ª Edição era o 5º nível, na 3ª era o 7º, e na 4ª Edição essa premissa fez os jogos possíveis em três patamares, 7-14-25. (acho que cada um vai ter uma opinião sobre qual o nível exato, mas não acham que existe isso mesmo?)

A 4ª Edição disfarçou um conceito que a 5ª parece querer colocar às claras. Níveis e skills não convivem bem. Comprar skills todo nível torna o jogo viciado e pouco prático. Por isso, na 4ª edição não importa muito o quanto sua skill subisse, a dificuldade subiria atrás dela.

Mas o que isso tem a ver com HP? Os níveis perfeitos para jogar são os níveis em que você tem poder suficiente para ser bravo, sem deixar de temer pela vida do seu personagem. Os monstros e armadilhas são realmente um desafio, mas a diferença entre as classes não é tão acentuada. Um mago de 1º nível não faz nada, mas ele no 10º nível já resolve quase tudo sozinho nas edições de 1 a 3. O que nos leva à próxima questão…

Mas ter poucos HPs é Old School?
Sempre vai haver Puristas de qualquer coisa nerd. A série original era melhor que a Next Generation, os filmes com o Han Solo eram mais legais que os do Jarjar Binks, e Prometeus não tem o mesmo feeling de Alien.

Em D&D isso é ainda mais verdade. Mas acho que o pessoal old school às vezes exagera no apego às regras velhas. Não era divertido fazer personagens de 1º nível, nem me lembro da última vez que fizemos um. Os primeiros níveis de D&D são um erro mesmo, o sistema foi feito para você começar mais pra frente, uma vez que tenha aprendido tudo.

Isso sem falar no five minute work day, a sensação de que seu personagem só pode lutar 5 minutos por dia, e precisa descansar, seja por falta de HPs, seja porque já gastou todas as magias “decoradas”.

Mas numa coisa esse pessoal tem razão: até a 2ª edição, os HPs paravam de subir no 10º nível, a partir dali subia muito pouco e sem a intromissão do bônus de Constituição. Ou seja, havia um limite, e acho que esse limite era necessário. Personagens de 3ª Edição eram chatos depois do 11º nível, porque eles disparavam não apenas em múltiplos ataques, mas em HPs também.

Enfim, por enquanto acho que a combinação da 5a Edição bem promissora: HPs básicos altos, com rolagem sem Constituição nos níveis, e cura por Hit Dice entre os combates, tudo usando o bônus de Con como mínimo para as rolagens. Muito HP no início, uma subida não tão brusca, e cura entre os encontros, o melhor dos 3 sistemas de regras de D&D, na minha opinião.

Olhem também essa excelente discussão sobre “Dano Quando Erra“, uma regra interessante para histórias que é difícil para quem gosta de simulações.

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