Reino da Escuridão Eterna – Parte V

Tudo parecia nefasto demais. A entrada para aquele túnel escavado improvisadamente na casa do Burgomestre não trazia bom agouro aos aventureiros, parados ali, de frente para a descida rumo ao desconhecido. A escuridão sem som algum não ajudava a melhorar os ânimos, e um leve calafrio percorreu a espinha dos heróis, arrepiando os pelos da nuca momentaneamente. O sinal de perigo era claro. O cenário desolador havia culminado naquele momento lúgubre, principalmente depois de o grupo ter compreendido que cada memória empregada nas ilusões por toda a cidade não passava de um reflexo fantasmagórico de uma vida que existiu outrora em Shandalanar.

A descida teve início por uma incongruência de pedaços de pedra mal acabadas sobrepostas a outros pedaços que eram presos uns nos outros por uma grosseira argamassa que transformou a construção em uma laje rústica. Era perceptível que a escadaria havia sido feita às pressas e sem o cuidado necessário para que durasse. O túnel era largo o suficiente para permitir a passagem de três ou quatro pessoas lado a lado, com as paredes reforçadas por escoras e vigas de madeiras de diferentes tamanhos, o que reforçou a ideia de um grande trabalho improvisado.

Quem primeiro tomou a dianteira foi Dmitri, que logo sugeriu um posicionamento para o grupo convocando Fino para acompanhar a cabeça da fila – já que o svirfneblin tem habilidades especiais para esse tipo de percurso. A cada passada escadaria abaixo, Ceoris e Jake tinham uma sensação mista de angústia e desespero que cresceria ao longo da incursão, como se o peso do mal os envolvesse cada vez mais naquele local. Após um tempo longo demais – o que ampliava o desagrado em descer tão profundamente assim; mas antes que pudessem chegar ao final dos degraus, uma armadilha foi identificada. Era simples, apenas um fosso fundo com estacas de madeira.

– Me pergunto como uma força tão poderosa como essa que estou percebendo aqui, poderia precisar de um artifício tão simplório como esse. – Perguntou Ceoris quase retoricamente.

– Temos várias possibilidades, de uma barreira para criaturas fracas ou curiosos desatentos até uma armadilha de outro tempo, anterior ao que quer que esteja aqui agora. – Retrucou Dmitri.    

Ao final da escadaria os heróis se depararam com uma espécie de antessala larga, com um odor acre de bolor e suor impregnado pelas paredes. Marcas de sangue seco deixaram manchadas várias partes do piso. A mais recente, porém, devia ter poucassemanas. E foi Jake quem primeiro percebeu as marcas delineadas acima do pórtico à direita, uma linguagem sinistra que ele estudara muitos anos antes, a língua do inimigo, dos demônios.

– A luz deve ser apagada, a perfeição deteriorada, a ordem dissolvida e as mentes fragmentadas. – traduziu Jake, o deva, descendente dos anjos. – Essa é a língua dos infernos, mas não foi escrita há mais que alguns meses.

Antes de prosseguir pelos caminhos tortuosos do que identificaram claramente como uma masmorra, Fino enviou seu morcego mágico de estimação, Pipi, que fez um breve reconhecimento da área. Não foram avistados perigos imediatos, e todos concordaram em seguir sem demorar demais. Isso os levou até uma pequena sala à esquerda do aparente hall onde estavam. Por lá, não havia nada além ossos semi derretidos no centro do aposento.

– Não estou gostando disso. Isso aqui é bem característico de onde venho, das profundezas da terra. Esses ossos têm marcas de uma criatura, lembram daquela gosma que nos atacou dias atrás naquele templo abandonado? É de uma daquelas que estou falando. – afirmou o svirfneblin.

Ceoris ficou intrigada com uma ranhura na parede por onde poderiam passar pequenas criaturas. Com uma de suas lanças curtas de arremesso, a paladina remexeu pela abertura mas antes de tocar ao fundo, algo envolveu a lança e, com um forte puxão, “sugou” para dentro da fenda. Todos ficaram de prontidão para qualquer surpresa, mas nada aconteceu depois. Uma rápida investigação demonstrou apenas que o local ali embaixo poderia conter uma rede de pequenos túneis por entre as paredes, como uma espécie rede de passagens naturais de uma caverna. Talvez uma das criaturas que Fino descreveu estivesse ali, mas não era algo que revelasse urgência para o grupo checar, então seguiram para fora da sala em direção a outra porta ali perto.

O abrir da porta trouxe também um cheiro pútrido que pairava no ar. Sacas de alimentos em decomposição estavam jogados pelos cantos, assim como restos de carne com mofo e fungos  por toda parte, inclusive crescendo pelas paredes. Apesar da cena estranha, não havia qualquer criatura no pequeno aposento. Antes de sair, uma breve averiguação pelo local mostrou que uma das sacas amontoadas continha uma chave de metal levemente corroída pela ação dos fungos. Ceoris guardou a chave encontrada – era nítido e sui generis o gosto da oeridi por mistérios e investigações.   

Sem mais a decidir, a companhia se dirigiu ao corredor passando por baixo das inscrições malignas gravadas no átrio. Um maior cuidado era tomado no percurso pois, à medida em que avançavam, todos puderam ouvir um fraco som ritmado como pedaços de metal batendo um contra o outro de modo sutil. Além disso, rastros no chão indicavam passos à frente, mesmo que nada sugerisse que fossem recentes.

Os rastros seguiam até uma porta de ferro trancada. Após uma inspeção mais acurada, Dmitri concluiu quenada havia para se preocupar a não ser a dificuldade em abrir a porta. Porém, a chave encontrada pouco antes serviu para resolver a questão. Os olhos do nobre do Condado de Urnst estavam magicamente adaptados para a escuridão que permeava todo o local e, talvez por isso, ele conseguiu compreender rapidamente a situação: um halfling estava preso em uma cela. O corpo tomado por hematomas e mutilações diversas demonstrava que fora torturado por um tempo considerável até ser deixado para morrer.  As condições lastimáveis do pequenino eram pioradas por conta de desmoronamento recente que retorceu parte da prisão e soterrou parte de seu corpo, prendendo um de seus braços.

Apenas muita força de vontade, típica de sua raça, manteve a criatura viva, e maior ainda era sua determinação em busca de ajuda. O som estranho ouvido antes, vinha de débeis batidas na jaula, com um pequeno fragmento quebrado que a muito custo o halfling conseguiu alcançar para chamar atenção. O suelita logo abriu caminho para que Jake examinasse o moribundo antes que o último sopro de vida fosse exalado, mas o bruxo não esperava que o clérigo fosse tão rápido em agir. Com as mãos nuas, o deva movimentou levemente a cabeça da pequena criatura administrando um líquido avermelhado que havia sacado de seu manto. A poção imediatamente devolveu parte da vitalidade que já o abandonava quase por completo.  

Ainda debilitado, o halfling começou a falar uma linguagem estranha para a maioria dos presentes ali. Apesar disso, os termos foram prontamente compreendidos por Jake, que sabia se tratar de Velondi, um dialeto rural de algumas regiões na divisa com Furyondy. Poucos momentos depois o halfling pareceu cair no entendimento maior do que estava acontecendo e passou a falar na língua comum.

– Muito obrigado. Achei que iria morrer, mas vocês me salvaram. Estava há muito tempo aqui e já estava quase desacreditado. Meu nome é Kasnark e fui aprisionado aqui com grande parte da população da cidade. Mas o pior foi a tortura feita pela elfa negra. Agora só quero ir embora, preciso deixar esse lugar maldito. – choramingou o pequeno.

– O que tem aqui? Estamos precisando de informações para saber o que vamos enfrentar. – Questionou Fino.

– Fui deixado para a morte. O tempo passou e não tenho noção de quanto foi. Tudo começou quando Imshan’Murr chegou até à cidade. Foi tudo tão rápido. Ele chegou com uma caravana dizendo poder retirar má sorte, maus pensamentos, angústias e mau agouro das pessoas. Ele cobrava apenas uma boa história de quem atendia. Sempre encapuzado, a criatura maligna apenas não avisou que sugava as boas lembranças dos cidadãos tornando-os viciados em sua “purificação”. Logo a cidade estava sob seu domínio e todos começaram a ser aprisionados e trazidos para cá, como escravos. Ele e seus comparsas elfos negros. – explicou o halfling.

Com a necessidade de repouso imediato, os heróis decidiram manter Kasnark ali naquele aposento trancado por dentro com a chave enquanto investigavam o restante da masmorra. Ficou combinado de que caso não voltassem em um dia, ele deveria fugir para fora da cidade sem eles. E assim, pelos corredores mal iluminados a companhia seguiu os rastros que levaram a diversas salas e aposentos repletos de perigos. Enfrentaram criaturas estranhas como um cubo gelatinoso completamente translúcido, que cobria praticamente todo um aposento. E nessa parte, os heróis quase entraram na sala de onde talvez não conseguiriam sair depois, mas a expertise do gnomo das profundezas evitou o pior.

Um dos encontros mais inesperados ocorreu quando andavam por uma passagem repleta de musgos e corpos de estruturas complexas relacionadas entre si, como fungos de coloração arroxeada luminescente, que também iluminavam o ambiente com uma luz cálida e aroma inebriante. Naquele ponto, os aventureiros não sabiam dos grandes males que os aguardavam e, por isso, se deixaram seduzir pelo perfume das plantas.

Eles passaram por um grande salão repleto dessas plantas e fungos, que ao menor toque expeliam uma torrente de pólen e gases venenosos, mas o pior foi descobrir, na prática, que o esporos explodiam – lançando no ar um líquido inflamável e também venenoso –  quando atacados por armas. Esse episódio por pouco não encerrou a vida de alguns aventureiros. Porventura esse caminho terminaria se mostrando o mais tranquilo de percorrer, em vista dos horrores que seriam encontrados naquela masmorra infernal.

A expedição pelo conjunto de passagens e salões levou o grupo até uma espécie de hall, por onde mais de um caminho se abria ameaçadoramente, por isso o svirfneblin resolveu enviar Pipi para avaliar os trajetos antes de escolherem o melhor a seguir. E o morcego voou ágil por entre os caminhos, mas em algum ponto por um corredor, Fino deixou de sentir sua presença neste mundo – algo o matou. Apesar de ser uma criatura de outro plano e sua vida aqui ser apenas uma representação física, a morte de Pipi deixava um sentimento de dor e tristeza no coração do gnomo das profundezas. Por isso ele convenceu o restante do grupo a seguir por onde o morcego fora perdido para descobrir o que houve.

Os aventureiros chegaram até um novo aposento, mas dessa vez, apenas duas rotas eram possíveis: uma grande porta dupla de madeira perpassada por hastes de ferro e um largo corredor à esquerda. Foi nesse ponto em que Ceoris traduziu seu senso mágico de perigo, sendo o corredor um caminho menos perigoso do que seguir pela porta. Assim o grupo entrou no corredor e logo descobriu que ele seguia por incontáveis passos, cada vez mais adentro da terra, mas o problema eram os fungos que cobriam por completo o chão, paredes e até o teto do local. Felizmente o local tinha um mecanismo cravado na parede com um painel que controlava um tipo de veículo que andava sobre trilhos quase imperceptíveis no chão. Apesar do maquinário complexo, a paladina de Heironeous conseguiu decifrar a maneira como operar a máquina e transportar todos para o outro lado, onde o corredor virava para a direita e se abria para uma caverna de pedra bruta.

Como se culminasse uma trilha sinistra, os heróis entraram num salão trancado há tempos, onde esporos pairavam até mesmo no ar. Dali vinham os fungos, trancafiados há incontáveis gerações. A caverna era imensa, mas não oferecia perigo imediato, e os aventureiros se espalharam para cobrir todo o espaço que havia ali. Apesar das flores bizarras e das cores aberrantes, o local era grande o suficiente para evitar a proximidade.

Num dos cantos havia um monte enorme de fungos, uma massa de dejetos e podridão que parecia mexer levemente no ritmo dos fungos que pairavam com uma corrente de ar inexistente. Foi Dmitri que tolamente mexeu no amontoado, ao notar que abaixo dele havia algo brilhante, provavelmente de valor.

Não era uma massa inerte, ela não estava ali depositada. A criatura que se levantou era feita de mofo e decrepitude, uma massa de fungos e grandes cogumelos, com dois olhos ferventes em verde esmeralda… e asas, a criatura tinha asas imensas, abertas como membranas pegajosas. Seu pescoço serpenteou pela caverna, elevando os olhos bem acima dos heróis, e no momento em que ele levou para realmente acordar, os heróis tentaram se preparar para o que viria.

Era um dragão feito de musgo e podridão, algo como um verme das profundezas, e ao bafejar veneno ele quase acabou com a vida de todos. Espalhados por todo lado, os heróis tentaram alcançar a criatura, mas ela alçou vôo e se prendeu no teto, de onde planava para atacar e voltava a ficar inalcançável.

Ceoris preparou um golpe para quando o monstro se aproximasse, e vendo o movimento Dmitri se colocou próximo à oeridi, de forma a fazer dos dois um alvo óbvio. O dragão mordeu a isca, mas ao atacar recebeu o golpe de Ceoris, com todo o poder de trovões que Heironeous compartilha com a paladina.

Um clarão encheu a caverna, e todos ficaram surdos momentaneamente. Dmitri aproveitou isso para tentar seu truque mágico, uma fisgada elétrica que pode aproximar os inimigos. O dragão desabou em cima dele como uma avalanche podre, mas dando espaço para uma imensa bomba de fogo mágico produzida pelo gnomo. E outra logo em seguida, enquanto o dragão agonizava em meio às chamas mágicas.

No meio de toda a confusão, Jake salvou Dmitri, uma vez que o dragão evitava a fúria dos espíritos de luz que o meio-anjo havia convocado para protegê-lo. Sem dar trégua um segundo sequer, a paladina seguia desferindo golpe após outro, derramando toda sua fúria combativa sobre o dragão pútrido. Jake arrastou Dmitri para um pouco mais longe do combate e, de relance, viu que precisaria correr até Ceoris também que estava sob ataque pesado. Foi o tempo de deixar o bruxo na parede oposta, para conseguir chegar até a paladina que caia quase desacordada.

Diante da proximidade do dragão de podridão, o svirfneblin concentrou todo seu poder em disparos de múltiplos dardos mágicos que cortam o ar rasgando os fungos que formam a monstruosidade. Todo o rompante de energia mágica foi suficiente para dilacerar o corpanzil, que escorreu por pedaços venenosos de onde antes estava o dragão, preso ao teto.    

Após esse confronto os heróis tinham noção de que nada mais poderia ser feito. Estavam exaustos, alguns seriamente feridos, e eles provavelmente foram ouvidos pelas criaturas que estavam pela masmorra ou esses seres estavam escondidos muito mais adentro – havia túneis demais para explorar. Todos queriam desvendar mais os segredos daquele calabouço terrível, mas precisavam descansar e se preparar para enfrentar algo que, aparentemente, era pior do que os venenos e fungo dracônico.

– Esse era o lado menos perigoso? – questionou Elizir, se perguntando se o ouro que conseguiria dali valia sua própria vida.

E então o grupo decidiu sair e se abrigar na cidade, levando o halfling para um lugar mais seguro.

Leia o glossário para compreender alguns termos e ler os capítulos anteriores dessa aventura.

Sobre Janary Damacena

Janary Damacena escreveu 163 posts neste blog.

Sempre interessado em narrações fantásticas e de horror, apreciador de boa interpretação e defensor da regra de ouro.

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