Uma das minhas maiores alegrias nessa vida é jogar RPG, e isso não escondo de ninguém. Na verdade, essa é uma das primeiras coisas que as pessoas aprendem a meu respeito: eu sou nerd, geek e amo jogar esse treco. Ah, meu nome é Camila. Tudo bom?
Lá pelos anos 1990, o RPG não tinha a popularidade que tem hoje. Poucas pessoas conheciam o jogo, e era mais popular entre adolescentes de 15 anos que se fechavam em grupos nada amigáveis às meninas de 10 anos que queriam aprender. Portanto, minha saída foi criar meu próprio RPG, uma versão amadora do jogo que eu pouco conhecia.
Me juntei com dois colegas da minha sala, e criamos nossas próprias regras. Utilizávamos cenários de Arquivo X e Cavaleiros do Zodíaco para nossas aventuras, tínhamos somente um dado (até hoje não sei onde eles conseguiram aquele D20) e assim foi por todo o ensino fundamental. O RPG acabou sendo algo que nos unia, nos fazia ler e estimulava nossa criatividade, o que nos fez criar uma realidade paralela, uma bolha fantasiosa só nossa.
Na adolescência esse mundo se abriu um pouco e conheci outras pessoas que jogavam. Comecei a perceber que os nerds do segundo grau e da faculdade eram mais amigáveis que aqueles que encontrei na infância. Foram eles que me apresentaram outros sistemas e novas formas de imersão, o que acabou por me deixar ainda mais apaixonada pelo jogo.
Anos mais tarde, um dos meus melhores amigos (e mestre) disse que estava se juntando com outros rapazes para divulgar o RPG em Brasília. Parte do discurso deles era que nós, nerds, estávamos soltos por aí e precisávamos de um lugar divertido e seguro para nos encontrarmos e jogar. A ideia era juntar pessoas, não excluir; conhecer gente diferente, e não nos fecharmos nos mesmos grupos de sempre. Era uma ideia tão legal!
E então surgiu o D30. Há 10 anos. Lembro que meu primeiro evento foi em um salão de festa qualquer, com umas 5 mesas somente. Depois fui para outro evento, dessa vez lá no Espaço Cultural Renato Russo, que contou com 10 mesas preenchidas com pessoas totalmente desconhecidas. Confesso que fiquei chocada com a quantidade de gente que vi lá jogando, pois eu frequentava a Gibiteca há muitos anos e nunca tinha visto o lugar tão movimentado. As coisas estavam indo conforme planejado!
Pode parecer piegas, mas a sensação que eu tenho é que fui crescendo junto com o D30. Muita água rolou nesses 10 anos. Nesse meio tempo eu fui dos 20 aos 30, me formei na faculdade, conquistei estágios e empregos, comecei e terminei relacionamentos. Conheci as pessoas que hoje considero meus meus melhores amigos, assim como pessoas de outras localidades (do Rio de Janeiro a Lisboa). Tive a oportunidade de conhecer milhões de sistemas diferentes e tentei aprender com cada partida, ouvindo os outros jogadores e me deixando encantar por cada aventura, cada reviravolta na trama, cada ideia maluca que dava certo (ou errado).
Porém, se puder pontuar um coisa específica que mudou minha vida, seria a quebra de alguns preconceitos bobos que enfiaram na minha cabeça ao longo dos anos. Afinal, todos sabemos que ser nerd não é fácil: até hoje somos perseguidos pelo estereótipo negativo dos anos 1980. E para as mulheres era ainda mais difícil, por se tratar de um universo majoritariamente masculino. Porém, o D30 conseguiu pegar todas essas ideias pré-concebidas, e foi quebrando uma a uma ao longo do tempo.
Foi nos eventos do D30 que eu percebi a variedade absurda de pessoas que jogam RPG. Não somos virgens de 40 anos, cheios de espinhas e mau hálito, que ficam em frente ao computador o dia inteiro e nem sabem como é a luz do dia (ok, até temos gente nesse perfil, mas não é a regra). Somos uma mistura de tudo! Nos eventos podemos identificar roqueiros, góticos, sertanejo e forrozeiros. Temos funcionários públicos, empresários, desempregados, e gente de todas as classes sociais. Homens, mulheres, trans, heteros, LGBTQ e tudo mais que existir por aí. Pessoas boas, caridosas e babacas de primeira linha. Temos pais e mães de família (que até levam os filhos para os eventos), pegadores canalhas e solitários. Vamos do bombado da academia para o magrelo que curte música clássica, da galera de exatas, grandes matemáticos, aos artistas plásticos, escritores, atores. Vamos dos gênios com QI absurdo às pessoas com algum tipo de deficiência intelectual, do besteirol às aulas de história.
A variedade é tanta que me deixa até emocionada. Cada pessoa é um universo dentro de si e cada um de nós senta em torno de uma mesa para ouvir e viver histórias à sua maneira. Nas mesas não existem barreiras, não existem preconceitos, somente uma galera que quer jogar e curtir o momento. O D30 me fez sentir parte de um todo, de uma comunidade gigantesca que abraça tanta gente diferente que é impossível não encontrar pessoas com as quais você se identifica.
Por fim, só me resta agradecer e colaborar para que outras pessoas tenham a experiência que eu tive, de achar no RPG as amizades e amadurecimento que serão importantes por toda a vida. 🙂
Comments
Excelente depoimento. RPG é inclusão, diversidade e diversão. Parabéns e que venham mais 10 anos (e 20, 30, 40…)
Amei!! Que o RPG floresça ungido por diversidade, colaboração, empatia e experimentação!
Muito bacana o relato, Reinehr! Tem um tipo que você não mencionou: o tirador de sarro de nerd e RPG, que acabou jogando e se amarrando! Obrigada por isso 😉
Amei o texto, hermanita! Deu um show!
Gostei muito do post!!!
Se bem que eu acho que eu sou o exemplo do virgem de 40 anos mesmo…
Um ótimo ponto de vista! Que venham mais artigos 🙂
Que depoimento fofis! A inclusão é sempre válida, que venha mais 10, 20….. Grande abraço!